Valencia contemporâneo de Pelé, Wallace integrante da velha guarda,
Fernando Prass sobrevivente de mil novecentos e antigamente... É dessa
forma que o volante do Fluminense, o zagueiro do Flamengo e o goleiro do
Palmeiras são vistos por seus companheiros de clubes por terem um fato
em comum: usarem chuteiras pretas. A tradicional cor, que já foi
praticamente parte do uniforme, atualmente está pouco presente nos jogos
no Brasil. Uma estatística ajuda a ilustrar esse fenômeno. Nas partidas
envolvendo os grandes nas primeiras cinco rodadas dos principais
estaduais (Paulista, Carioca, Mineiro e Gaúcho), só 210 pares dos 1.559
que estiveram em campo eram predominantemente da cor preta. Uma média de
3,75 pares por partida.
O
processo de extinção do preto vem se acentuando. Há dez anos, ele ainda era maioria. Primeiro foi
perdendo espaço para o branco, que depois também se tornou comum e deu início à
moda das cores variadas. Do dourado ao prata, pintaram o verde,
o vermelho, o azul, o amarelo, o laranja, o rosa, o roxo... Vale
até um pé de cada cor, como por exemplo já usaram Hernane e Negueba, do
Flamengo, e Ricardo Goulart e Dagoberto, do Cruzeiro.
É um cenário diretamente influenciado, além da moda e das
gozações, pelas grandes fornecedoras de material esportivo. Elas
patrocinam
jogadores para poderem expor seus símbolos nas chuteiras, numa
negociação que independe das empresas ligadas aos clubes, mesmo
que sejam marcas rivais.
-
A maioria usa chuteira colorida porque é a que o patrocinador manda,
não tem como escolher. A empresa faz a chuteira, e o jogador só escolhe o
modelo. A cor, são eles que mandam. O atleta se torna refém da empresa -
criticou Ramiro, que usa chuteira preta, assim como os companheiros Marcelo
Grohe e o paraguaio Riveros.
O mercado nacional é amplamente mapeado pelas duas maiores fornecedoras de material esportivo do mundo, a alemã Adidas
e a americana Nike. A Série A do Brasileirão tem 460 atletas, se considerados os titulares e os 12 permitidos no
banco de reservas por jogo. Apenas a Adidas
patrocina quase a metade deste montante. A Nike, consultada, não divulgou
números. Mas, se tiver um número parecido com o do concorrente, cobre junto com ele quase toda a elite do futebol nacional.
-
Hoje, os principais jogadores dos principais clubes têm esse modelo de
negócio. A Adidas tem mais ou menos 200 jogadores em nível nacional, de
diversas séries e de base também - contou Daniel Schmid, gerente da
categoria futebol da Adidas Brasil.
A moda das chuteiras coloridas começa do berço, desde as
categorias de base. No duelo sub-20 entre Corinthians e
Flamengo pelas oitavas de final da Copa São Paulo deste ano, por exemplo, apenas dois jogadores usavam chuteiras pretas.
As grandes fornecedoras também mapeiam os jovens e
chegam a investir uma fatia neste mercado. Só que muitos que não têm
patrocinador acabam usando para ficarem iguais a seus ídolos ou demais
companheiros - e assim fazem propaganda gratuita das marcas.
- É questão de gosto. Hoje, principalmente o pessoal mais jovem gosta
de chuteiras coloridas. Teoricamente são mais bonitas - relatou
Ramiro, volante de 20 anos criado na base do Juventude e recém-saído dos
juniores do Grêmio.
CASO ROMARINHO E A Relação com a torcida
Ela já foi implicante, mas anda mais tolerante com as chuteiras
coloridas. A torcida foi um termômetro que acompanhou a mudança da moda
nos pés dos jogadores. Hoje, a chuteira só desperta a atenção - e a
bronca - quando tem as cores do rival. É o caso de Romarinho. No ano
passado, o atacante do Corinthians usava uma chuteira esverdeada, cor do
arquirival Palmeiras. O jogador, que também vinha sendo criticado fora
de campo, procurou mostrar que alterou seus hábitos e passou a ser visto
como um exemplo pela diretoria e teve no calçado preto o símbolo de sua
mudança.
Para Romarinho, a chuteira preta trouxe sorte. Com
ela, prometeu gols contra Palmeiras, Oeste e Rio Claro. E cumpriu.
Voltou a ser xodó, com o nome gritado durante os jogos.
- Eu
sempre gostei de uma chuteira mais discreta, é da minha personalidade.
Vou ficar com a pretinha, basiquinha, que está dando sorte -
defendeu-se.
O caso de Romarinho é parecido com o do zagueiro
César, da Ponte Preta. Ele começou a ser cobrado pelos torcedores por usar uma chuteira verde,
cor do arquirrival Guarani. A rivalidade também entra em campo no Rio
Grande do Sul: jogadores do Grêmio não usam calçados vermelhos por causa
do Inter, que por sua vez evita o azul.
As reclamações isoladas dos dias atuais já foram mais frequentes há
alguns anos. Goleiro titular do Palmeiras, Fernando Prass citou um
episódio que viu de perto envolvendo o lateral-esquerdo Adriano, do
Barcelona, da Espanha. No início da carreira, os dois eram companheiros
no Coritiba.
- Lembro que em 2003 o Adriano
jogava lá e foi convocado para a Copa América. Ele voltou com uma
chuteira prateada, e a torcida achava um absurdo. Falaram que ele tinha
que se preocupar em jogar futebol. Dois, três anos depois, já era o
contrário. Foi uma coisa que mudou muito. Hoje já caiu no gosto - relatou.
No
início da década, quando começaram a surgir as chuteiras coloridas no
Brasil, existia a mentalidade de que o preto transmitia mais seriedade.
Criado neste contexto, Wallace diz que se sente até estranho ao usar
calçados coloridos. O zagueiro, revelado pelo Vitória e com passagem
pelo Corinthians, só usou pares azuis e verdes no ano passado, no
Flamengo. Mas, após romper com o patrocinador, retomou a tradição.
-
Lá na base do Vitória tinha um lance de que zagueiro não poderia usar
outra cor e tinha que ser sem trava. Na época em que eu estava lá, era
camisa por dentro, sem brinco, cabelo cortado e chuteira preta, era meio
exército mesmo (risos). Os treinadores falavam que a chuteira para os
torcedores ia chamar
muita atenção, e eles iam dizer: "Aquele de chuteira branca errou de
novo". Como desde os 11 anos acabei pegando esse costume, me sinto até
um pouco estranho usando outras cores. Não para impor mais respeito,
pois acho que os pés são o último lugar que se olha.
Ação de marketing
A cada quatro chuteiras fabricadas no mercado brasileiro,
apenas uma é preta. A informação é da Adidas
e explica a aceitação do produto no mercado. Visibilidade nos
pés dos jogadores e desejo fomentado nos consumidores. As fornecedoras
de material esportivo encontraram a fórmula do sucesso e passaram a
ditar o ritmo do jogo da maneira mais empresarial possível. O patrocínio com os atletas tem contrato assinado e é negociado com
os empresários dos boleiros na maioria dos casos.
E os
trabalhos
não param por aí. Uma vez com os contratos assinados, é hora de dar
visibilidade ao produto por meio de ações de marketing. Nos documentos,
as empresas geralmente estipulam aos jogadores a troca de pares de
chuteiras de três em três meses. Mudam-se as cores ("para seguir a
última tendência", diz o gerente de futebol da Adidas Brasil) e
mantém-se o modelo.
As
duas maiores fornecedoras de material esportivo do mundo trabalham com
couro, couro sintético e outras combinações de tecido na fabricação das
chuteiras. O tecido
também influi na escolha da coloração.
- Não existe uma cor melhor ou pior. Hoje a cor acaba sendo
influenciada pelo que os jogadores vêm fazendo e vai da tendência, moda,
que cor consegue traduzir o material. O dourado, por exemplo, no couro
sintético não funciona tão bem, não fica muito vivo. No couro
(tradicional) a cor fica mais opaca - explicou Daniel Schmid, da Adidas.
TRADIÇÃO como vitrine
Existem
chuteiras pretas de fábrica, com a marca da fornecedora e
eventuais detalhes coloridos, e as que são inteiramente pretas, das
travas ao cadarço. Quando o torcedor vir o segundo tipo, pode ter
certeza de que foi pintado pelo próprio
jogador. A prática consiste em camuflar os símbolos para não fazer
propaganda de graça e se tornou comum entre atletas sem esse patrocínio.
Como os pés coloridos viraram comum, aqueles pintados de preto acabam
chamando mais a atenção e se tornam uma espécie de vitrine, em que os
boleiros
anunciam o espaço à venda.
- Ao meu modo de ver, às vezes se aceitam certos
patrocínios muito fácil e não abre a concorrência para as demais. Acaba
criando um monopólio porque todos os jogadores usam devida marca. Se
der uma pressionada, outra virá, ou a própria marca vai te dar uma
valorizada maior. É isso que falta acontecer - opinou Wallace, único
atualmente da equipe titular do Flamengo que usa a chuteira preta.
Há um certo trabalho para manter a chuteira pintada de preto. A tinta
vai saindo aos poucos com o uso, principalmente em materiais que não são
de couro tradicional, o que cria a necessidade de retocar a pintura de
uma a duas vezes ao mês. O branco também pode ter a mesma finalidade. O
meia argentino Conca, do Fluminense, já calçou pares de
chuteiras pintados das duas cores nesta temporada.
- Como tenho patrocinador só de luva, levo a chuteira
no sapateiro e pinto para não fazer propaganda de uma marca que não é
minha. Pode ser que tenha de outras cores, mas o mais fácil é pintar de
preto - disse Fernando Prass, também o único do time principal do
Palmeiras que joga de preto nos pés.
HOMENS DE PRETO
Nas
primeiras cinco rodadas dos estaduais de São Paulo, Rio de Janeiro,
Minas Gerais e Rio Grande do Sul, ao todo 42 jogadores dos grandes
clubes usaram pares de chuteiras predominantemente pretas ao menos uma
vez. Alguns ainda usam, como Ramiro, Valencia, Wallace, Fernando Prass,
Airton, Romarinho... Outros assinaram patrocínios recentemente e já
aderiram às coloridas, como o uruguaio Martín Silva e o paraguaio
Aranda.
Confira a relação:
Atlético-MG: Donato e Marion
Botafogo: Airton, Fabiano e Octávio
Corinthians: Alexandre Pato, Emerson, Romarinho e Uendel
Cruzeiro: Borges, Dagoberto, Henrique e Luan
Flamengo: Wallace
Fluminense: Conca, Michael, Valencia e Wagner
Grêmio: Breno, Marcelo Grohe, Moisés, Ramiro e Riveros
Internacional: Alex Fernando, Índio, Paulão e Thales
Palmeiras: Frenando Prass
Santos: Alan Santos, Aranha e Thiago Ribeiro
São Paulo: Antônio Carlos, Luis Ricardo, Maicon, Reinaldo e Rogério Ceni
Vasco: André Rocha, Bernardo, Luan, Martín Silva, Rafael Vaz e Thalles
Por Thiago de Lima - Rio de Janeiro
* Colaboraram Diego Ribeiro, Diego Rodrigues e Marcelo Hazan.